O doce deste amargo me faz bem

O doce deste amargo me faz bem

O doce deste amargo me faz bem

Nesta sexta-feira, sentei-me no café do francês que oferece o melhor croissant do norte de Portugal. Ou melhor, de Vila Nova de Gaia. Ou ainda melhor, do Conselho de Gaia. Quero dizer, da freguesia Mafamude. Ok. Do bairro onde estou vivendo. Não importa. Sentada aqui nesta mesinha na esplanada (que quer dizer na rua), tenho uma vista privilegiada do início da Rua Ramalho Ortigão. Tem um canteiro de grama cheio de flores rochas que parecem ter persistência para suportar até mesmo os dias rigorosos de inverno. O sol acerta apenas o gramado. Não alcança a mesa. O croissant derrete na boca. Sempre peço com queijo, mas já sei que o de chocolate é o grande queridinho dos clientes. Enquanto bebo um gole do café com leite que aqui se chama meia de leite por causa do tamanho da xícara, vejo uma espécie de caravana vermelha entrar na rotunda com velocidade até mesmo reduzida para esta via. Nela pude ler: expressa-te. A pintura vermelha do carro dando potência ao convite pintado de branco. Vejo o carro desaparecer à esquerda enquanto tenho no rosto a expressão de ter sido surpreendida por uma estrela cadente. É claramente uma mensagem para esta manhã de sexta-feira que apesar de começar macia como o croissant me incomoda com algumas questões que parecem não ter respostas. Lembro de na próxima vez pedir café sem açúcar para não dar ao francês o trabalho de separar dois sachês e colocar no meu pires. Aqui o pratinho que serve de apoio para a xícara não deve chamar pires. Não faço ideia de como ele foi batizado deste lado do mar. Não tolero mais café doce. E já fui gente que acreditava que o bom do café estava no docinho dele. Ironicamente, só conheci o sabor do grão ao rejeitar o açúcar. Como se fosse mesmo ser fundamental manter a atitude de abandonar a ilusão do doce. A mudança é gradual. Os primeiros goles amargos - dados há alguns anos - não desceram bem goela abaixo. Foi bom ter sido firme. A única coisa ruim é não precisar mais mexer o café. Acho elegante este movimento. Expressa-te. Tento compreender se tenho coisas a dizer que se calhar não disse. Ando acostumada a conviver com palavras que parecem querer saltar de mim. Como se eu fosse um trem em movimento para o destino errado. Sempre foi assim. Melhor, como seu eu fosse um grande depósito ambulante delas. Nem sempre é de forma escrita. Às vezes, elas querem movimentar a conversa. Mas pensando bem, todo mundo tem um arsenal de coisas para serem ditas. Ou caladas. Ou escritas. Ou até mesmo compreendidas. Somos todos essa costura de informações. De códigos que precisam ser decifrados. De palavras novas que chegam para alterar a nossa limitada visão das coisas. Para nos tirar da zona de conforto. A compreensão gosta desta aparente falta de chão. Somos cheios de palavras que parecem combinar com outras por determinados momentos. De palavras com sotaque. De palavras ditas baixinho por falta de coragem. De palavras que se soltam aos prantos. Aos berros. Que cortam silêncios profundos. De palavras que parecem nos abençoar. De outras palavras que servem como verdadeiras mantas a nos cobrir. E, às vezes, somos as palavras certas na vida de alguém. É engraçado pensar que talvez nunca vamos saber do bem que fizemos ao falar. Acredito que por vezes somos condutores desta mensagem premiada sem nem saber. Aparecemos na rua. No início da manhã. Tarde da noite para comunicar. Para lembrar que é preciso continuar. Mesmo sem todas as respostas. Mesmo na ansiedade de novas perguntas. Perto ou longe de casa. Com ou sem fome. Com ou sem um croissant macio para levar à boca. Somos todos farinha do mesmo saco mesmo. Por isso é tão importante estarmos atentos. Esta atenção nem sempre é em posição de sentinela. Em muitos dias ela se desenha no acreditar que tudo está como realmente deveria, mesmo que a gente não consiga perceber. Porque sempre temos tudo que necessitamos. É uma espécie de rendição. Que ainda é diferente de entregar os pontos. É como se a gente entendesse a mensagem da vida para então aceitar. E a partir desta permissão, do mesmo modo como acontece com o açúcar ou com a falta dele, a vida ganha um novo sabor. Aceitar a falta de açúcar é conhecer o sabor do café. Ver o caminhão é ter motivo para dizer. Para fazer uso deste amontoado de palavras que carrego dentro e que vez por outra querem estar no mundo. As minhas palavras não se contentam em estar apenas dentro de mim. Aqui, neste cantinho de Portugal, engulo apenas café e croissant. Minhas palavras estão soltas. Prontas para viver do lado de fora. Quem sabe, dar a mão para você. Infelizmente apenas fotografei o croissant, mas como quis deixar uma foto minha sorrindo, encontrei esta de um café da manhã em Lisboa, há alguns dias. Há realmente muitas formas de se começar o dia. O meu começou com um pedido de expressão.

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Carmen Marangoni  
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